Foi com grata satisfação que recebi a comunicação do Presidente Renan Calheiros sobre a outorga da Medalha Ulysses Guimarães. Ser distinguido pelo papel desempenhado no processo de redemocratização do País é uma honraria sem precedentes. Dedico essa importante comenda ao povo do Estado do Paraná.

A perspectiva da promulgação de uma nova Constituição, de um novo contrato para reger direitos, deveres e garantias dos cidadãos em relação ao Estado era um desejo que estava disseminado no inconsciente coletivo de um País traumatizado pelo longo período de autoritarismo. Foi o reencontro do Brasil com o Estado de direito democrático. E Ulysses Guimarães, ao empalmar a nova Constituição, afirmou, no dia 5 de outubro de 88: “Esta é a Carta da democracia, da justiça, a Constituição Cidadã da liberdade. Que Deus nos ajude a cumpri-la!” Como ele tão bem definiu: “Carta feita com amor e sem medo”.

A Constituição Federal completou 25 anos de sua promulgação no último dia 5 de outubro, com quase 80 emendas já aprovadas em seu texto e inúmeros dispositivos constitucionais que expressamente demandam a regulamentação por lei ordinária ou lei complementar, sem falar naqueles dispositivos que, a despeito de não fazerem menção expressa, exigem regulamentação em face de complexidade e abrangência.

Dentre os dispositivos constitucionais pendentes de regulamentação, agrupados de acordo com sua topografia constitucional, discriminados por tema, assunto específico tratado e existência de clásula de reserva de iniciativa, podem ser mencionados, entre outros, no Título II –Dos Direitos e Garantias Fundamentais, Capítulo II –Dos Direitos Sociais, no Tema Direitos dos Trabalhores , os dispositivos Proteção contra a Despedida Arbitrária –Art. 7º, I (iniciativa ampla), Licença Paternidade – Art. 7º, XIX (inciativa ampla), bem como Proteção do Trabalhador em face da automação –Art. 7º, XIX( inciativa ampla). Na esfera do servidores públicos, o direito de greve do servidor público – art. 37,VII (iniciativa ampla). Nesse contexto, poderíamos listar ainda mais de 70 dispositvos constitucionais pendentes de regulamentação.

Em que pese haver um número expressivo de dispositivos constitucionais pendentes de regulamentação, considerando que nem todos são explícitos ao exigir a complementação legal, devemos repetir a máxima deixada pelo Dr. Ulysses: “Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la nunca.”

Nesse contexto, parece-nos inadequada qualquer iniciativa que objetive reformar a Constituição por uma assembleia revisora exclusiva. Precisamos somar esforços para que a atual Carta seja cumprida.

No dia 1º de fevereiro de 1987, 559 Parlamentares começaram os trabalhos para aprovar a nova lei suprema do Brasil. Tive a honra de estar entre esses 559 Parlamentares, mas não tive a honra de participar dos trabalhos da Constituinte, porque, no dia 15 de março daquele ano, assumia o Governo do Estado do Paraná. Então, embora, Senhor Presidente, meu nome conste impresso na Constituição – por isso, muitos me indagam se fui Constituinte –, não fui Constituinte. Apenas tive a honra de estar presente no início dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte.

Foram necessários 18 meses de discussões até que a Carta fosse finalmente promulgada no dia 5 de outubro de 1988. Era substituída a Carta Magna imposta pelo regime militar em 1967. “Aquele momento consolidou o processo democrático brasileiro”, como afirma o ex-Ministro Nelson Jobim.

A Carta Magna de 1988 é moderna e com grande preocupação social, marcando a redemocratização do País e opondo-se a qualquer forma de autoritarismo. Privilegia os Direitos Humanos, totalmente desrespeitados no período anterior. Através do art. 150, §11 do Ato Institucional n° 14, chegou-se mesmo a legalizar a pena de morte em variadas circunstâncias, como em caso de guerra revolucionária ou subversiva, para citar apenas um exemplo.

A Lei Maior de 1988 confere clara prioridade à pessoa humana, subordinando as atividades econômicas privadas ao respeito pelos direitos fundamentais do indivíduo e à consideração do interesse social.

Vale ressaltar que a prioridade conferida aos direitos humanos pela Carta de 1988 não se esgota no texto constitucional em si, mas surte efeitos multiplicadores em todo o ordenamento jurídico brasileiro. Recorde-se, a propósito, o avanço na proteção e promoção dos direitos humanos acolhido pelas constituições estaduais e leis orgânicas dos municípios, promulgadas a partir de 1988.

Destaque-se, ademais, que o cuidado com esses direitos alcança e informa o conjunto das leis ordinárias do País, enriquecido sobremaneira na década seguinte à da promulgação da nossa Carta Política. A título ilustrativo, citamos a adoção, em 1990, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069) e do Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078); em 1996, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394) e da Lei do Planejamento Familiar (Lei nº 9.263); e, em 1997, do Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503). Todos esses instrumentos privilegiam a perspectiva da indivisibilidade e da universalidade dos direitos humanos, instaurando, com isso, nova ética para o convívio social.

Essa perspectiva não deixa de ter validade sequer diante do tratamento dispensado pela Constituição de 1988 aos direitos específicos de alguns grupos sociais mais vulneráveis (crianças, adolescentes, idosos, mulheres e índios). Na verdade, a defesa desses direitos e a previsão de garantias formais inéditas — seja pela natureza do instrumento (habeas data, mandado de injunção), seja por sua forma coletiva (habeas corpus, mandado de segurança, ação popular) — apenas consolidam a idéia dos direitos econômicos, sociais e culturais como parte integrante e indissociável dos direitos humanos.

Não me canso de repetir que a queda da desigualdade e a redução da pobreza de expressivas parcelas da população tiveram início em programas de transferência de renda garantidos pela Carta de 1988. Faço referência a esse fato porque estamos acostumados a verificar a comemoração, até exagerada, que fazem quando anunciam que milhões de pessoas deixaram a faixa de pobreza no País, sem reconhecer que ações pretéritas foram realizadas e promoveram a melhoria da qualidade vida da população do País, especialmente a partir da Constituição de 1988. Cito, por exemplo, o Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural – Funrural –, criado em 1971, no regime militar, que pagava meio salário mínimo ao lavrador pobre a partir de 65 anos de idade, benefício que foi ampliado para um salário mínimo, com redução da idade da aposentadoria, em decorrência da determinação constitucional de universalização da Previdência. Recordo, ainda, que o Benefício de Prestação Continuada da Previdência Social atende aos idosos com mais de 65 anos e a pessoas com deficiência. Os dois programas são os grandes responsáveis pela redução da indigência de milhões de brasileiros, com origem na Carta Magna de 1988.

A Constituição Cidadã foi retratada de forma primorosa em muitas passagens do histórico discurso proferido pelo Dr. Ulysses Guimarães por ocasião da sua promulgação. Vou reproduzir alguns trechos lapidares do memorável discurso de Ulysses Guimarães, que considero exemplo de liderança política de todas as gerações, mas especialmente das gerações que conviveram com ele no período que antecedeu a Constituição de 88 e no período posterior à Carta Magna.

Vou encerrar este registro, portanto, com palavras de Ulysses Guimarães:

“O enorme esforço é dimensionado pelas 61.020 emendas, além de 122 emendas populares, algumas com mais de 1 milhão de assinaturas, que foram apresentadas, publicadas, distribuídas, relatadas e votadas, no longo trajeto das subcomissões à redação final. A participação foi também pela presença, pois diariamente cerca de dez mil postulantes franquearam, livremente, as 11 entradas do enorme complexo arquitetônico do Parlamento, na procura dos gabinetes, comissões, galeria e salões. Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de fábrica, de trabalhadores, de cozinheiros, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar.

Como o caramujo, guardará para sempre o bramido das ondas de sofrimento, esperança e reivindicações de onde proveio. A Constituição é caracteristicamente o estatuto do homem. É sua marca de fábrica. O inimigo mortal do homem é a miséria. O estado de direito, consectário da igualdade, não pode conviver com estado de miséria. Mais miserável do que os miseráveis é a sociedade que não acaba com a miséria.

A moral é o cerne da Pátria. A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos, que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam. Não roubar, não deixar roubar, pôr na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública. Pela Constituição, os cidadãos são poderosos e vigilantes agentes da fiscalização, através do mandado de segurança coletivo; do direito de receber informações dos órgãos públicos; da prerrogativa de petições aos poderes públicos, em defesa de direitos contra ilegalidade ou abuso de poder; da obtenção de certidões para defesa de direitos; da ação popular, que pode ser proposta por qualquer cidadão, para anular ato lesivo ao patrimônio público, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico, isento de custas judiciais; da fiscalização das contas dos Municípios por parte do contribuinte; podem peticionar, reclamar, representar ou apresentar queixas junto às comissões das Casas do Congresso Nacional; qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato são partes legítimas e poderão denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União, do Estado ou do Município. A gratuidade facilita a efetividade dessa fiscalização.

… a Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança. Que a promulgação seja nosso grito: – Mudar para vencer! Muda, Brasil! “

Muito obrigado.