No verão baiano Caetano Veloso relembrava, com nostalgia, a cidade do Salvador da sua adolescência. Destacando imagens de filme de Orson Welles, onde ela aparece como uma obra prima urbanística. Citava Stefan Zweig, para quem o Brasil tinha as cidades mais bonitas do mundo. Entendendo: “Se tivesse havido consciência do valor estético da estrutura urbanística e arquitetônica de Salvador na altura em que Welles viu a cidade – ou quando eu vim de Santo Amaro – e tivéssemos podido planejar a modernização mantendo-a, teríamos hoje uma joia do Atlântico Sul, em lugar do caos que vemos”. O caos urbano não é localizado, estende-se pela quase totalidade das grandes cidades brasileiras.

Antropólogo e historiador o baiano Antonio Risério, inteligência ativa e criativa na análise do Brasil contemporâneo, autor de marcantes livros, onde se destaca “A Cidade no Brasil”, em “O Estado de S. Paulo” (25-01-2014), analisa com competência as oportunidades perdidas que levaram à maior crise urbana da história brasileira. Participante do núcleo estratégico das duas eleições de Lula da Silva à presidência, suas opiniões não podem ser catalogados de neoliberais. Transcreveremos algumas das suas constatações:

1. “Nossos governantes, numa verdadeira marcha da insensatez, abrem não da reforma urbana. Precisaríamos de um verdadeiro Ministério das Cidades, de prefeitos que não se comportassem como agentes da especulação imobiliária, de uma vontade coletiva de sair do buraco. As cidades brasileiras estão vivendo dias especificamente difíceis, de uma ponta a outra do País. Estão maltratadas, sujas, agressivas.”

2. “Salvador é uma mistura de cantora de aché, prostituta decadente e capoeirista bêbado, um vilarejo com elefantíase. O Rio vitrine olímpica? Tende a ser o paraíso do autoengano. O País não está nadando em dinheiro. A prioridade deveria ser a luta contra a favelização. São Paulo, diz muito da nossa força e de nossa miséria. Mas a cidade é bem maior que seus governantes.”

3. “As promessas não se transformam em realidade. O programa Minha Casa, Minha Vida constrói hoje as favelas do futuro. Todo mundo concorda que todos precisamos de um lugar onde morar. Mas por que até hoje isso não acontece. Milhões de brasileiros, depois de 20 anos de governos social-democratas, continuam amontoados em alojamentos deprimentes. Em nenhum outro lugar a desigualdade social se expressa de forma tão clara e brutal quanto na moradia.”

4. “O Brasil tende a ser o paraíso de autoengano. Depois de Antonio Palocci, a política econômica do governo meteu os pés pelas mãos. Estamos combinando crescimento medíocre e inflação controlada artificialmente. A prioridade deveria ser contra a favelização do País, por casas decentes e serviços públicos de qualidade, contra a violência e o narcotráfico, contra a podridão do sistema político e pelo direito de todos à cidade.”

5. “Até as manifestações de junho passam a ser vistas como subproduto da excelência dos governos do PT. Mas o Brasil não foi as ruas dizer que quer mais. O Brasil quer diferente. Quer um governo cujo compromisso maior não seja com o mercado e o consumo, mas com a melhoria das condições de vida das pessoas. Além disso, o que Fernando Henrique e o PT não querem reconhecer é que eles atiraram fora a oportunidade histórica de renovar a política no Brasil. As pessoas foram às ruas para dizer que é preciso revitalizar a democracia brasileira, hoje degradada.”

6. “Lula e Dilma, com sua ênfase consumista, privilegiaram o comércio de automóveis, dando uma contribuição imensa para encalacrar de vez nossas cidades. Além de não atender a maioria da população, o carro individual sai caro demais para o governo. Carro novo na rua obriga o governo a usar recursos para fazer ruas, pontes, viadutos, etc. É um gasto absurdo, que poderia se concentrar no transporte público e melhorar a vida das pessoas e das cidades.”

As opiniões sérias, contundentes e indesmentíveis do notável pensador soteropolitano, Antonio Risério, ocuparam uma página e meia do “Estadão”, por título “Em busca do urbanismo perdido.” Aqui reproduzimos trechos da sua abordagem original e inovadora de um assunto que tende a crescer no futuro: o caos urbano brasileiro.

Hélio Duque é doutor em Ciências, área econômica, pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Foi Deputado Federal (1978-1991). É autor de vários livros sobre a economia brasileira e suplente do Senador Alvaro Dias.