“Em alguns níveis administrativos, surgiram o desrespeito pela lei e o incentivo ao suborno, ao servilismo e à glorificação. Com justiça, os trabalhadores indignavam-se diante do comportamento de pessoas que, desfrutando de confiança e investidas de responsabilidades, abusavam do poder, suprimiam a crítica, faziam fortuna e, em alguns casos, tornavam-se até cúmplices – se não organizadoras – de atos criminosos”. Em 1987, o primeiro-ministro, da então poderosa União Soviética, Mikhail Gorbachev, no seu livro “Perestroika, Novas Idéias para o meu País e o Mundo”, denunciava o que seria o enterro, sem glória, do coletivismo burocrático. Suas palavras, acima transcritas, tinham na chamada “glasnost”, permitindo o debate de idéias, a oxigenação reformista da velha estrutura totalitária. Era tarde, a velocidade dos acontecimentos esmagaria a disfuncionalidade da burocracia absolutista.
Foi o começo do fim da utopia que proclamava o Estado proletário como interprete único da vontade e dos interesses de todos os trabalhadores. Em dezembro de 1984, visitando, em delegação oficial do Congresso Nacional, a União Soviética, durante três semanas, a disfuncionalidade do Estado era visível. De Moscou a Leningrado (hoje São Petersburgo); de Kiev a Stalingrado (hoje Petrogrado) e por outras repúblicas onde estivemos, a insatisfação da sociedade aflorava nos olhos e gestos daqueles que não integravam o círculo oficial. Mesmo o rígido programa que se cumpria, foi possível a alguns parlamentares, dele desvencilhar-se e fazer incursões por áreas que não integravam o roteiro oficial cuidadosamente feito pelos anfitriões.
Em Moscou, no Hotel Sovietskaia, onde todos se hospedaram, certo dia, ao percorrer o seu entorno, fomos abordados por um casal. Desejava fazer câmbio de dólar por rublos. Ofereciam 450 rublos por 100 dólares. No câmbio oficial, que fizemos ao chegar ao país, a troca era de 98 rublos por 100 dólares. Temerosos da moeda ser falsificada, optamos pela troca de 100 dólares, recebemos 450 rublos. Cuidadosamente misturamos com as notas trocadas no câmbio oficial e constatamos que eram verdadeiras. O mesmo cenário se repetiu em outras cidades visitadas. Era a clara demonstração de que o sistema monetário soviético estava fazendo água, por todos os lados.
Em Leningrado, no principal e grandioso mercado popular, construído no tempo dos czares, a carência de bens de melhor qualidade era visível. Em compensação, nos mercados que atendiam a nova classe de burocratas endinheirados, concorreriam, com qualquer “shopping” do mundo ocidental. Ofertavam em abundância para os “privilegiados locais”, diplomatas e estrangeiros residentes, a preços de mercado, os mais sofisticados bens de consumo.
Velho servidor do coletivismo burocrático, Mikhail Gorbachev ao chegar à chefia do governo ao afirmar que “os trabalhadores indignavam-se diante do comportamento de pessoas que, desfrutando de confiança e investidas de responsabilidade, abusam do poder” quis mudar radicalmente a realidade. Derrotado e expulso do poder tornou-se o grande vitorioso e figura marcante no século XX. Sepultou o coletivismo burocrático, tornando-se “persona non grata” para os totalitários. Quando falava das fortunas acumuladas pela corrupção no Estado soviético, pelos membros da nomenclatura do poder, o tempo lhe deu razão. Hoje, algumas das maiores fortunas do mundo estão em mãos de membros da “máfia russa”. Seja em Londres, Gibraltar, Abu Dhabi ou na própria Moscou. A história é implacável.
Hélio Duque é doutor em Ciências, área econômica, pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), foi Deputado Federal (1978-1991) É autor de vários livros sobre economia brasileira e suplente do Senador Alvaro Dias.